Sunday, April 02, 2006

A vida como ela não é.

No inesgotável mundo dos reality shows, muito pouco de sério acontece. Mas foi justamente com a declarada intenção de dar o que pensar à audiência que o produtor R.J. Cutler, formado em Harvard, com experiência em teatro e documentários importantes no currículo, pôs no ar em março, nos Estados Unidos, Black.White, que mostra o dia-a-dia de duas famílias – uma branca, maquiada e caracterizada como negra, e uma negra, maquiada e caracterizada como branca. "Raça é questão determinante na sociedade, na história e na cultura dos Estados Unidos. Não há nada mais importante. Está no nosso DNA", diz Cutler. Com essa convicção na cabeça e várias câmeras, escondidas ou não, espalhadas em seu trajeto, durante seis semanas, a família Sparks – pai, mãe e filho adolescente, negros de Atlanta, Geórgia – morou na mesma casa alugada com as loiras Wurgel, mãe e filha, e Bruno Marcotulli, namorado da mãe, de Santa Monica, Califórnia. Três a quatro vezes por semana, cada membro da família se submetia a cerca de cinco horas de maquiagem, feita por uma equipe altamente especializada de Hollywood, e depois saía à rua para atividades variadas, em geral num ambiente pouco favorável – brancos entre negros e vice-versa. Impressionaram os efeitos especiais: em momento algum nenhum deles foi desmascarado. Surpreendeu um efeito colateral: a convivência dentro da casa, entre as famílias, foi muito mais difícil e estressante do que sua experiência na rua.
O programa, pela própria maneira como foi realizado, serve no mínimo para comparar o tipo de tensão racial hoje existente com o flagrante racismo de 1959, ano em que o escritor branco John Howard Griffin escureceu a pele à custa de medicamentos e maquiagem, raspou a cabeça e passou meses viajando pelo sul segregacionista. Dois anos depois, publicou o livro Black Like Me; ameaçado de morte, pegou a família e foi morar nove meses no México. Em Black.White, desde os primeiros programas se notam no núcleo branco uma enorme disposição de seguir os manuais de correção política e o desejo de tratar o racismo como uma questão mais ou menos superada, exagerada pelos negros; os Sparks, de seu lado, empenham-se em provar justamente o contrário. Todos exacerbam esses comportamentos. Algumas situações mostradas da realidade tal como ela é – e também como é percebida em ambos os lados da linha racial:
• Brian, 41 anos, que trabalha em construção, cobre-se de seu disfarce branco e vai com Bruno, 47, misto de professor e ator, "vestido" de preto ("O nariz foi o maior desafio", conta Brian Sipe, da equipe de maquiagem), a uma loja elegante. Bruno acredita que os vendedores o seguem por toda parte porque são atenciosos; Brian diz que é porque desconfiam dele.
• Brian, como branco, seguido por uma câmera à vista de todos, decide experimentar um sapato na loja de um exclusivo clube de golfe e o vendedor se ajoelha, põe o calçado no pé dele e amarra o cadarço – "Pela primeira vez na minha vida". Depois, volta na sua própria pele, com uma câmera escondida, e repete a experiência; o vendedor é "simpático", mas entrega o sapato na mão dele e sai. Ele mesmo admite, porém, que as câmeras ostensivas, na primeira situação, podem ter feito a diferença.
• No papel de negros, Bruno e Carmen Wurgel, 48 anos, "olheira" de agências de talentos, vão a um bar de brancos. Carmen pede um café e só é servida quando mostra o cartão de crédito. "Ficou claro que eu não era desejada ou bem-vista naquela comunidade. Não me senti bem", diz.
• Renee, 38 anos, gerente em um escritório, participa como branca de um grupo de estudos sobre questões raciais e ouve um rapaz de 20 e poucos anos comentar: "Tem aquelas coisas inatas, que se aprendem desde sempre. Por exemplo, se aperto a mão de um negro, meu instinto é limpar".
• Rose, a jovem branca de 18 anos, entra para um grupo negro que estuda poesia e se sente mal por estar enganando os colegas. Resolve aparecer um dia sem disfarce, conta sobre o reality show e continua a ser bem tratada. Já a turma das aulas de boas maneiras do "branco" Nick, 17 anos ("Quando pusemos a maquiagem branca, as sobrancelhas dele saltaram. Tivemos de depilar metade", descreve o maquiador), revela mau comportamento: nas conversas, o termo ultra-ofensivo nigger é usado com freqüência.
Na casa, sem disfarces, os quatro adultos se pegaram o tempo todo, seja por atitudes, seja pelo uso de termos inadequados, e muitos capítulos são um mar de lágrimas. Agora, experiência encerrada, os Sparks, as Wurgel e Marcotulli, que ganharam cada um cerca de 10.000 dólares pelo trabalho, voltaram para seus respectivos mundos e só se encontram para divulgar a atração. "Ainda podemos tomar um drinque juntos, trabalhar pelo sucesso do programa", diz Bruno, o branco. "Desde que não se fale em raça", ressalva Brian, o negro. Black.White não tem previsão de ser exibido no Brasil. Mas uma adaptação local certamente também daria muito – muito mesmo – que falar

2 Comments:

Blogger Monalisachupaedesliza. said...

Caralho, que foda, ehauheauhaehuaehuaehuaeuahuaeea
os negros se sentiram como brancos uma vez na vida e os brancos como negros.
Mas interessante o que aconteceu com a guria até que entrou no grupo de negros poetas.

9:48 AM  
Anonymous Anonymous said...

Oh, eu li isso na Veja hoje!

5:23 PM  

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